Press | Entrevista DELFOS (a profecia das artes)

May 25, 2015

“Penso que não somos assim tão diferentes uns dos outros. Não há ninguém que nos seja mais estranho que nós mesmos. Tudo o que fazemos/vivemos acaba por conter alguma universalidade e, dessa forma, torna-se relacionável”.

Dois anos volvidos desde a entrevista com a Ana Isabel para o DN (http://www.dn.pt/inicio/artes/interior.aspx?content_id=3131949), que então, antecipava o lançamento do “Subnutridos”, voltámos a conversar, eis o resultado.

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Entrevista no Delfos sobre o álbum “Subnutridos” pela Ana Isabel:
https://delfosaprofeciadasartes.wordpress.com/2015/05/21/entrevistaluis-formiga/

“Há adivinhas nas sombras, devias escutá-las também.” Canta-nos Luís Formiga em ‘O Teu Deus’, um dos 12 temas do seu primeiro Longa Duração, ‘Subnutridos’, laçado em junho do ano passado. Embora certas sombras estejam longe de histrionismo banais ou luzes florescentes, tal não significa que não encerrem mundos em si, mundos que nos passam ao lado pelo imediatismo decorrente das primeiras impressões ou pelas nossas distrações avessas. A meu ver, e escrevo apenas tendo em conta a minha própria perceção do que escutei, ‘Subnutridos’ tenta chamar a atenção para esses mundos esquecidos que a todos nós nos custa a ver , anteriores à nossa imagem e que, afinal, transportam com peso uma grande parte da nossa condição humana. Curioso que seja isso mesmo que nos permita escutar algo que nos soa completamente visceral e íntimo para nos transportar para outras histórias com pessoas dentro, como que a relembrar-nos que somos feitos da mesma pele, do mesmo sangue e dos mesmos ossos. A subtileza e acalmia da música coexiste com o peso inerente das letras que focam fraquezas, fragilidades, sobretudo as fragilidades daquilo que procuramos e nos falta. Qual a força da nossa fraqueza refletida no espelho? Qual o peso da fraqueza de não se ‘ saber desistir das flores’? Para além de ‘Subnutridos’, Luís Formiga já nos havia presenteado em 2011 e 2012, respetivamente, com os Ep´s ‘Luís Formiga’ e ‘Dois Depois’. Tem novos projetos na manga, um novo álbum e uma peça que engloba texto, música e ilustração, ‘A Ópera de um homem só’. Há dias concedeu-me uma entrevista por e-mail e, sem mais demoras vãs, vejam o resultado que vale a pena. “Vou tentando não falar muito alto e talvez seja mais difícil chegar a um maior número de pessoas dessa forma, mas esforço-me por fazer sempre a coisa pela coisa, e ficar de braços abertos para o que acontecer. Aí, talvez, se alguém passar por perto e me ouvir, fique um pouco”, contou-me.

1- ‘Deus está morto’, como se sabe, é uma ideia nietzschiana. No tema que serviu de avanço para o teu primeiro LP, ‘O teu Deus’, começas logo por dizer, ‘Não queria ser eu a dizer-to mas o teu deus está a morrer.’ Achei interessante ser este o tema com que apresentaste o álbum tendo em conta, claro, os tempos que correm. Podias falar um pouco sobre a ideia por trás deste tema e como a letra nasceu?

Eu acredito que a moralidade absoluta não depende de um ser supremo. Esse tema aborda a ideia Nietzschiana que a morte de Deus, uma afirmação muitas vezes mal percebida — que no fundo retrata o declínio da religião e a ascensão do ateísmo — teria forte influência na ausência de uma maturidade moral, que por sua vez mergulharia o mundo no caos.
A música está escrita na perspetiva de alguém que se dirige a um indivíduo que na sua essência é niilista mas que tem dificuldade em aceitá-lo. Confronta-o com a ideia deixada por Camus que a morte de Deus é inconsequente e que a humanidade não tem necessidade de uma autoridade superior ou da ameaça da ira divina para viver uma vida boa e moral.

2- Como é que percecionas a religião?

O meu percurso tem-me oferecido imensas questões mas muito poucas respostas.
É um assunto que me traz alguma inquietude apesar de não ter qualquer crença religiosa. Essa inquietude prende-se com tudo o que rodeia a religião e que acaba por camuflar a sua essência.
O ponto de vista filosófico das divindades é o que realmente me interessa. É um tópico sobre o qual me debato muitas vezes, mas que ainda não me sinto capaz de o resolver em mim. É como ler um livro e constatar que há ali coisas que ainda não somos capazes de entender e sabermos que teremos de voltar mais tarde para, talvez aí então, o perceber.

3- Outra letra interessante é o ‘Mundo Circular’ em que, de certo modo, se transmite a dificuldade em se romper com um ciclo que se sempre se conheceu. Esta letra encerra uma ideia interessante. De certo modo fez-me pensar num eterno retorno do qual será difícil escapar.

A grande maioria das músicas vive de um diálogo interno, como se existissem forças em luta. Reduzi-las a poucas palavras, através da síntese, obriga-me a um esclarecimento maior.
Essa letra baseia-se na ideia de que é preciso uma força maior para conseguir descontinuar esses ciclos nos quais nos encontramos presos por um sem número de fatores, ou até mesmo inconscientemente.
O amor, neste caso, serve um propósito ilustrativo porque me parece ser a força motivadora mais universal e relacionável para os quebrar.

4- A palavra Litost, título do tema do ‘Dois depois’, como disseste e muito bem na primeira entrevista, é ‘ como um estado de tormento criado pela súbita visão da nossa própria miséria.’. Também é assim que Kundera tenta defini-la no 5ª capítulo d’O livro do riso e do esquecimento’. De certa forma parece ser essa a grande base, se virmos as coisas a fundo, de tudo aquilo que tentas abordar nos teus temas. Mas é algo que parte daquilo que a priori parece ser íntimo e depois se abre para uma análise da nossa sociedade em todas as vertentes. É como se tentasses captar uma certa essência da sociedade, (das pessoas), e daquilo que podes observar no quotidiano. Desde a solidão, desde a miséria (a justiça mija nas ruas), até ao que permanece oculto mas não quer dizer que não exista.

Penso que não somos assim tão diferentes uns dos outros. Não há ninguém que nos seja mais estranho que nós mesmos. Tudo o que fazemos/vivemos acaba por conter alguma universalidade e, dessa forma, torna-se relacionável.
As letras das canções são uma representação parcial da forma como olho, observo e sinto. De alguma forma, tento que nas entrelinhas transpareça o que penso. Na maioria das vezes a letra é uma máscara de uma ideia, uma forma palpável ou mais direta de abordar um conceito maior, ainda que extremamente limitada pelo meu real. Mas outras são apenas o que são.

5-Tragédia sem sangue e chapa/ Não faz manchete de jornal/ Se não se vê, não se pensa, não tem mal. Esta análise é forte e certeira a vários níveis.

Aborda uma dualidade. Por um lado escolhemos não olhar, para que os acontecimentos não ajam sobre nós, mas existe simultaneamente uma atração muito forte pela tragédia. Há muitos fatores envolvidos, mas penso que essa atração está intimamente ligada à aproximação da nossa própria mortalidade quando nos vemos confrontados com catástrofes, acidentes ou atos de violência extrema.

6- Agrada-te deixares transparecer, antes de tudo, a ideia nas canções aliada a uma certa linha musical que serve a voz? É isso que te agrada no género folk?

Não é de todo consciente no momento de composição que as coisas devam restringir-se a um determinado formato. O Folk acaba por ser o género musical que melhor serve o meu intuito, muito ligado à ideia que as músicas podem constituir elas mesmas uma aprendizagem, que podem ocupar um espaço de entretenimento, embora claro o possam ser.

7- Qual foi o maior desafio de saltar de dois ep’s para o primeiro álbum?

Penso não ter existido algo de muito distinto no processo em relação aos EP’s.
Mas considerando a constante procura que tem sido cada obra — e embora eu tenha partido para este álbum com maior esclarecimento sobre aquilo que procurava devido ao seu maior número de músicas — acabou por tornar o processo um pouco mais moroso.

8-Conta-me acerca das parcerias que utilizaste para o álbum. Há até um dueto com a Inês Moreira. Foi fácil, a nível de tempo, conciliar também essas parcerias?

A vontade de trazer amigos para estúdio era impreterível. Pessoas que estavam em sintonia comigo e com as minhas intenções para o álbum e que podiam, dessa forma, enriquecê-lo.
Penso que, no fundo, tudo se resume a construir as canções do álbum da mesma forma como coexisto nas relações pessoais.
Foi esta mesma vontade de juntar músicos e perceber tudo de bom que daí advém que acabou por dar origem à Pássaro Vago que, antes de ser uma editora, queria acima de tudo ser um coletivo.

9- Conta-me como tem sido o desafio de avançarem com a ‘Pássaro Vago’? O trabalho tem sido compensador? Acaba por haver uma entreajuda entre os músicos das bandas que a pássaro vago alberga? Se sim, como é que a dinâmica funciona?

Tem sido, sem dúvida, um desafio. É um trabalho que exige muita dedicação e tempo. Existe muita vontade e ideias que queremos realizar que seriam extremamente positivas para o desenvolvimento da editora e dos artistas envolvidos, mas há muitas coisas que escapam ao nosso controle e que demoram tempo.
Além disso, a forma como a música é publicada/ouvida tem mudado significativamente e nós crescemos ainda num paradigma que se alterou drasticamente nos últimos anos. É preciso perceber a melhor forma de fazer as coisas, ir redefinindo o papel da editora na atualidade e a sua forma de funcionamento.
Há dois princípios subjacentes à criação deste coletivo. Primeiro, conseguir criar a faísca no inconsciente que faz com que, quando um membro/elemento cresce musicalmente ou como pessoa, todos os que o rodeiam crescem.
Segundo, perceber que, colaborando, somos melhores, especialmente numa sociedade em que a individualidade é cada vez mais forte e as pessoas andam todas de costas voltadas umas para as outras.

10- A tua relação com a composição como é e como tem evoluído? Há músicas e temas que compões e ficam na gaveta à espera do momento certo para saírem para fora, ou já compões em específico para aquele determinado ep ou álbum? Por exemplo, como aconteceu com os temas do ‘Subnutridos’?

O método varia um pouco. Vou escrevendo muitas músicas e elas inevitavelmente vão-se acumulando. Depois é uma questão de voltar a elas, perceber se há já alguma distância entre mim e o tema que elas abordam e, essencialmente, se essa distância significa que as devo abandonar (por não fazerem mais sentido em mim) ou se significa que estou pronto para as terminar. Por sua vez, desse leque de músicas finalizadas, saber quais fazem sentido ou não incluir no álbum naquele momento.
Estou a acabar algumas músicas para um álbum novo de forma semelhante como abordei o ‘Subnutridos’ e, paralelamente, estou a escrever uma história (A ópera de um homem só). É uma peça que engloba ilustração, texto e música, mas para a qual já estou a escrever as músicas especificamente.

11- Começando pelo princípio. Como e quando é que nasceu a tua relação com a música e quando percebeste que se podia tornar em algo mais consistente e sério?

Eu comecei ainda novo na música. A continuidade na adolescência com projetos foi nutrida pela aflição de “matar” o platónico da paixão. No entanto, tenho constatado, parcialmente devido a este projeto a solo, que a minha relação com a música tem uma seriedade e constância maior do que tinha consciência, porque ela nasce de uma necessidade muito visceral, e acaba por funcionar como uma espécie de catarse.

12- Ainda antes de avançares com os Ep’s em nome próprio já tinhas ou ainda manténs outras parcerias musicais como, por exemplo, os this Potatoe. Como é a conciliação desses projetos em paralelo? E poderias falar um pouco sobre o teu percurso musical antes dos ep’s?

São projetos que, tirando a distância geográfica dos elementos, são relativamente fáceis de conciliar, principalmente porque ocupam espaços bem distintos dentro da minha relação com a música. Antes do projeto a solo, que teve a sua génese quando estive a viver fora de Portugal, e dos Ep’s, tinha feito parte de uma série de grupos de originais e até de covers.
Com os This Potatoe, fui convidado a fazer parte do projeto depois de ter feito instrumentação para algumas músicas e a coisa ter funcionado bem a nível humano, na verdade veio colmatar a minha falta do formato ‘banda’ e aproximar-me de novo ao baixo, que foi sempre o meu principal instrumento.

13- Para alguém que, ‘no fundo, só quer fazer música que mereça ser música’ como é caminhar atualmente, da forma como o fazes, no próprio mundo na música? Quais são, por exemplo, as dificuldades com que te deparas? É-te difícil como as coisas estão atualmente?

Parece-me que, de certa forma, hoje em dia todos temos um megafone na mão direcionado ao mundo. Mas são tantas pessoas a tentar “falar” que já ninguém ouve coisa alguma ou dificilmente se perde mais do que uns minutos com a obra de alguém, a menos que a mesma conquiste a pessoa de imediato ou já seja publicamente, largamente aceite. Há um crescente barulho na nossa cultura. Há barulho por todo o lado, música em cada esquina. Na maioria das vezes, nem é consciente sequer a escuta da mesma. E não querendo generalizar, devido à velocidade a que as coisas acontecem e ao imediatismo inerente, o foco de atenção das pessoas está cada vez mais reduzido. Existem realmente muitas coisas boas, mas algumas precisam do nosso tempo.

Vou tentando não falar muito alto e talvez seja mais difícil chegar a um maior número de pessoas dessa forma, mas esforço-me por fazer sempre a coisa pela coisa, e ficar de braços abertos para o que acontecer. Aí, talvez, se alguém passar por perto e me ouvir, fique um pouco.

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