As contrições de um comum mortal
por Manuel A. Fernandes.
“Anybody can be specific and obvious. That’s always been the easy way. It’s not that it’s so difficult to be unspecific and less obvious; it’s just that there’s nothing, absolutely nothing, to be specific and obvious about.” Quando Robert Zimmerman proferiu estas palavras à estação da rádio canadiana CBC, numa entrevista de1966, pouco ciente estaria do legado que deixou e da bandeira, irrevogavelmente rejeitada, que representou para uma geração. Vamos colocar as coisas nestes termos, Bob Dylan num mundo justo seria uma cadeira semestral de um qualquer curso de composição musical ou escrita criativa. E desde logo, a referência central sobre escrever o tudo e o nada com reinterpretações constantes da vida que é a estrada entre esses dois pólos. Por muito que se tente separar esta longa caminhada versada pelo cancioneiro de Townes Van Zandt, Woody Guthrie, Donovan e o casal Fariña, os trilhos partem de uma pedra rolante e vão desaguar a outras culturas, ambientes distintos, novos dogmas musicais. Luís Formiga é essa identidade artística que vai recolhendo várias fases e impressões da escola folk anglo-saxónica com o bossa nova do Chico e do Vinicius, dos trovadores malditos como Leonard Cohen e da chanson francaise de Gainsbourg e Brassens, inculcando um novo espírito, uma marca distintiva e sui generis na forma como encara as suas próprias histórias.
Estes dois Ep’s (Dois Depois/Luís Formiga) são duas fracções de uma saga que se vai socorrendo da palavra e do condutor verbal intuitivo das viagens de Luís. Editados com um intervalo de diferença de um ano, estes dois diários de bordo reflectem claramente a procura de um artista em convulsão criativa e no meio de um turbilhão de interessantes ideias por arrumar. Uma sensibilidade e timidez latentes que se alicerçam num acústico de fundo, uma harmónica e um contrabaixo suave e corpulento, para num acto confessional debitar frustrações, mundividências e esperanças pessoais naquele “quarto 203”. Músicas de quem vive em dias de chuva e uma auto-estima que nunca encontrou bom reflexo nos espelhos. Face intimista quase auto-biográfica, com elementos universais da nostalgia e fragilidade humana como versam as linhas de “Agora Sapato”. “Caminhar é um exercício de Deus, correr, tropeçar com dignidade. Há quem confunda informação com verdade, há até quem pense que saúde é felicidade”, na melhor faixa composta por este jovem músico, revela-nos uma astuta e sapiente leitura de um quotidiano ocidental, arrumadinho e escalado por objectivos, numa poesia de trote fácil e que quase se confunde com um grito de revolta rebelde e incompreendido. A faixa inaugural de “Dois Depois”, marca uma evolução estética, assim que a guitarra dedilhada de “Litost” acompanha a angústia e a penitência de um romance falhado e de promessas vãs por um passado de chagas, a braços com a pesada herança do arrependimento.
Não esperem entretenimento, risadas vazias e letras em vácuo. Aquele que se descreve como “caçador de cerejas e tempestades” há-de continuar a trocar os v’s pelos b’s e a levar a sua música com gente dentro, na catarse do tempo. Expurgando os seus demónios numa terapia diáfana, para nos relembrar que mesmo no recanto mais negro da nossa alma se pode vislumbrar a beleza que reside entre notas e palavras.
Para Ouvir:
luisformiga.bancamp.com
facebook.com/luisformigamusic
Texto por:
Manuel A. Fernandes (jornalista)
manuel.a.fernandes@rockrolaembarcelos.com
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